Quando Nise da Silveira iniciou seus tratamentos de terapia ocupacional baseada na arte, ela esperava que a atividade contribuísse para melhorar o quadro de seus pacientes e oferecesse a eles uma nova forma de expressar suas emoções. Mas esse trabalho também revelou ao mundo grandes artistas, que estavam soterrados debaixo das terapias psiquiátricas convencionais da época, ou que nunca tinham tido a oportunidade de demonstrar sua criatividade.
“Era surpreendente verificar a existência de uma pulsão configuradora de imagens sobrevivendo mesmo quando a personalidade estava desagregada. (…) Que acontecia? Nas palavras de Fernando estaria possivelmente a resposta: – Mudei para o mundo das imagens. Mudou a alma para outra coisa. As imagens tomam a alma da pessoa”, escreveu a própria Nise, no primeiro capítulo de seu principal livro, As imagens do inconsciente, a respeito dos trabalhos feitos na oficina de pintura.
A primeira pessoa a reconhecer a excepcionalidade das obras foi Mario Pedrosa, um dos mais importantes críticos de arte da história brasileira. Impressionado, ele levou até o hospital o crítico francês Léon Degand, que decidiu organizar uma exposição no Museu de Arte Moderna de São Paulo, com algumas peças produzidas nas oficinas de Nise. Sob o nome “Nove Artistas do Engenho de Dentro”, ela estreou em 1949 e depois foi levada para outros espaços.
Talentos marginalizados
A necessidade de preservar as obras, organizar outras exibições e proporcionar pesquisas sobre os trabalhos levou Nise a criar, em 1952, o Museu de Imagens do Inconsciente. Inicialmente ele funcionava no corredor das salas onde eram oferecidas as oficinas, dentro do Hospital Psiquiátrico Pedro II, em Engenho de Dentro, Zona Norte do Rio de Janeiro.
“Eram pessoas marginalizadas pela sociedade e pela ciência, mas surgiram talentos extraordinários. A ideia da psiquiatria é que, com a doença, a inteligência, a afetividade, a criatividade da pessoa vão entrando em um processo de deterioração. E o trabalho da Nise mostrou que a criatividade estava viva dentro dessas pessoas”, destaca o atual diretor do museu, Luiz Carlos Mello.
Depois, o museu ganhou casa própria, em outro prédio, mas ainda no terreno do instituto, onde segue até hoje sob a administração da Sociedade Amigos do Museu de Imagens do Inconsciente, fundada em 1974, às vésperas da aposentadoria compulsória de Nise, para garantir que seu trabalho não fosse interrompido.
O Fernando citado por Nise é Fernando Diniz, um dos artistas que trabalharam com a médica por mais tempo, somando milhares de pinturas produzidas. Também ganharam destaque no meio artístico pessoas como Adelina Gomes, Carlos Pertuis, Emygdio de Barros, Lúcio Noeman e Octávio Inácio.
O museólogo Eurípedes Junior, que integra a diretoria da Sociedade, tinha 19 anos e estava na faculdade de Música, quando começou a ministrar oficinas dentro das atividades de terapia ocupacional de Nise da Silveira. Ao atravessar o hospital “cheio de lixo, com pessoas sem roupa, nas mais degradantes condições, Eurípedes diz que se “chocou terrivelmente” e pensou em nunca mais voltar, mas a experiência com os pacientes o convenceu a continuar.
“A primeira impressão que eu tive da doutora Nise é que ela era uma pessoa com um magnetismo muito grande. Ela me entregou seus pacientes, que era a coisa que ela mais amava no mundo, e eu perguntei para ela o que ela queria que eu fizesse, e ela falou: “Você faz o que você achar melhor, usa a sua criatividade”. Aí eu comecei a fazer experiências musicais que eu não conseguia fazer na escola de música, e isso foi maravilhoso para mim, tanto como profissional, como quanto pessoa, porque eu comecei a construir uma outra outra forma de ver o mundo”.
Sua experiência de 40 anos, trabalhando com as oficinas e depois contribuindo com o museu, deu origem ao livro recém-lançado “Do asilo ao museu – Nise da Silveira e as coleções da loucura”.
Ele tenta explicar toda a potência das obras: “O mundo interno é um grande universo que está para ser descoberto e que a nossa sociedade valoriza muito pouco. Pessoas que dão um mergulho nesse mundo interno, que se perdem nesse mundo interno e sofrem por terem perdido a integridade do pensamento e da consciência por causa de experiências profundas muito poderosas que a gente mal conhece e dá o nome de loucura, sempre foram excluídas, estigmatizadas. A doutora Nise resgata uma coisa importante que é a individualidade dessas pessoas, demonstrando ao mundo os valores e as riquezas desse mundo interno”
Mais de 200 exposições
Hoje o museu abriga cerca de 400 mil obras, mas a coleção só aumenta, já que as oficinas continuam a ser oferecidas. Cerca de 128 mil delas foram tombadas pelo Iphan e estão sendo digitalizadas. O museu também é o guardião da biblioteca pessoal de Nise da Silveira, e de todo o seu acervo de estudos e pesquisas. A direção está concluindo o projeto executivo para levantar verbas para uma ampliação, que vai permitir o melhor acondicionamento do acervo, e propiciar mais conforto e mais atividades para os visitantes.
Desde a sua criação, já foram realizadas mais de 200 exposições, incluindo “Nise da Silveira – A revolução do afeto”, que já está em sua sétima edição, passando pelo Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília e pelo Sesc de Sorocaba.
“A gente fez uma curadoria de seis artistas, uma seleção dessas imagens do museu, e colocou em diálogo tanto com alguns artistas modernos que frequentaram o atelier como também com obras contemporâneas, porque outras pessoas também lidam com o problema da saúde mental, diretamente ou por outras formas de pensar corpos marginalizados”, explica Isabel Seixas, uma das curadoras da exposição. Ela complementa que as obras foram escolhidas não só pela sua representatividade artística, mas pelo contexto em que se inserem nas pesquisas feitas por Nise, que ajudaram a psiquiatria a entender melhor o inconsciente.
A mostra já foi vista por mais de 300 mil pessoas, incluindo 50 mil estudantes que foram levados pelas escolas. Isabel faz uma reflexão que se encaixa na realidade dos artistas mas também dos visitantes: “Ter contato com a arte é sempre ampliar os referenciais de mundo. Você tem acesso a universos internos de outras pessoas e isso amplia sua forma de olhar o mundo, seja apenas para o delete estético, seja na forma como isso impacta você”