Quem entra em uma das salas do Departamento Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), no centro da capital paulista, se depara com uma brinquedoteca com adesivos coloridos nas paredes e ursinhos de pelúcia. Na parede oposta, uma placa metálica indica que ali funciona a 4ª Delegacia de Repressão à Pedofilia.
É neste local que a equipe de investigadores trabalha na caça de criminosos que têm como alvo crianças e adolescentes. O trabalho de investigação é feito quase todo na internet – onde infratores usam o aparente anonimato da rede virtual para consumir conteúdo pornográfico infantil e aliciar menores de idade.
“A nossa delegacia é praticamente virtual. Nós buscamos por crimes digitais, como troca de fotos, vídeos e produtores de vídeos”, detalha a investigadora Ana Paula Ferraz Gandolfi, de 41 anos.
Além de combater a produção e o consumo de pornografia infantil, os policiais também precisam lidar com outra modalidade criminosa: o “estupro virtual”.
“Essa modalidade é mais recente, e acontece quando um aliciador se passa por uma criança ou um adolescente para ter contato com as vítimas por meio das redes sociais. Após criar um vínculo afetivo, ele induz a vítima a produzir fotos e vídeos, geralmente com nudez, e passa a ameaçá-la caso ela não faça algo que ele manda, como enviar as imagens, por exemplo”, explica.
Há também casos em que a vítima envia o material e passa a ser chantageada para não ter o conteúdo publicado. Muitas vítimas passam meses sob pressão, o que acaba afetando o comportamento e pode acender um alerta para os pais de que algo está errado.
“A criança, depois de uns 3 meses passando por essa situação, está tão esgotada, que não aguenta mais. Com isso, os pais começam a notar a mudança de comportamento e aí, na primeira oportunidade, vão olhar os celulares dos filhos para tentar entender o que está acontecendo. É nesta hora que os pais descobrem que os filhos estão sofrendo abuso”, afirma o investigador Alexandre Scaramella, de 51 anos.
“Caçadores” de abusadores na Deep Web
Além de monitorar redes sociais em busca de material pornográfico infantil, a Polícia Civil de São Paulo conta com outra ferramenta para a investigação: a infiltração nos grupos de criminosos que vendem e compartilham cenas de abuso na chamada Deep Web.
A infiltração é autorizada por meio da lei nº 14.332, que também estabelece um prazo limite para que os policiais coletem provas para o indiciamento de uma ou mais pessoas. Com as infiltrações, os policiais conseguem identificar o modo de agir desses criminosos, a linguagem que usam, símbolos e até tatuagens.
“Eles têm essa necessidade de se identificar. Como vivem à margem da sociedade, têm essa necessidade de se encontrar, não só na internet, mas também no mundo real”, detalha o investigador Jorge André Domingues Barreto, de 39 anos.
Barreto é mestrando em Ciências da Computação pela USP e atua na Unidade de Inteligência do Departamento de Polícia do Interior 5 (Deinter 5), em São José do Rio Preto, no interior paulista.
O investigador se especializou em infiltrações a partir de 2016, quando fez o curso patrocinado pela Homeland Security Investigations (HSI), com apoio da Embaixada dos Estados Unidos, na Academia da Polícia Civil “Dr Coriolano Nogueira Cobra”, na capital paulista.
Pouco antes do curso, Jorge André conheceria um dos parceiros que o acompanhariam nas chamadas “caçadas” aos abusadores: o perito criminal Hericson dos Santos, responsável pelo Laboratório de Informática Forense do Departamento de Polícia do Interior 10 (Deinter 10), em Araçatuba, no interior paulista. O agente, de 42 anos, iniciou a carreira na Polícia Civil como escrivão e também cursa mestrado em Ciência da Computação pela USP.
Após o curso da HSI, os dois policiais já haviam auxiliado na prisão de 18 criminosos em apenas dois meses. O feito chamou a atenção justamente porque a maioria dos policiais que assistiam às aulas começava com apenas uma ou duas prisões meses após a formação. Por conta do desempenho muito acima da média, o investigador e o perito foram chamados pela Embaixada dos EUA para se tornarem instrutores do curso, ensinando policiais do Brasil e do exterior.
“Somos convidados pela Embaixada dos Estados Unidos, de tempos em tempos, de duas a três vezes por ano, para ministrar esses cursos para as polícias do Brasil e até de fora. A gente não recebe nada a mais por isso, é uma causa que encampamos”, conta o perito Hericson dos Santos.
Operação Luz na Infância
Com cada vez mais alvos sendo detidos em todo o estado de São Paulo, os agentes foram chamados em 2017 pela Polícia Federal para auxiliar na busca por criminosos que vendiam e consumiam material pornográfico infantil na internet. Tinha início, então, uma das maiores ações em todo o país: a Operação Luz na Infância.
Ao todo, já foram 10 fases da ação, que cumpriu 1929 mandados e prendeu 718 criminosos em flagrante no Brasil e em países como EUA, Argentina, Costa Rica, Chile e Panamá desde o começo.
“A Luz da Infância foi originada de policiais de São Paulo, e foi a maior operação do mundo de combate à pedofilia em um único dia. Fizemos 250 prisões em um dia”, lembra Hericson, que se dedica à análise pericial dos conteúdos obtidos pelos investigadores.
Assim que são autorizados pelo Poder Judiciário, os policiais civis podem entrar na casa dos suspeitos e apreender equipamentos como celulares, notebooks e computadores. A parte de perícia fica por conta dos agentes da Polícia Técnico-Científica, que irão analisar o conteúdo e produzir um relatório, explicando quais crimes estão sendo cometidos e qual é a participação dos acusados nos delitos.
Um exemplo dessas duas áreas, investigação e análise pericial, pode ser encontrado em uma ação realizada na região metropolitana de São Paulo, em que um homem estava sendo investigado por armazenamento de conteúdo pornográfico infantil. Um dos investigadores tirou uma foto para divulgação da operação. Durante a análise do computador do homem, os peritos encontraram um vídeo mostrando o abuso contra uma vítima, que segurava um urso de pelúcia na mão. O ursinho e a parede do local eram os mesmos que apareciam na imagem registrada pelos policiais no quarto do acusado.
“Neste caso você fez uma prova de que o estupro acontecia nesse local. Essa é a importância de treinar as equipes, o investigador simplesmente tirou a foto e depois o perito encontrou o material de abuso com uma criança. Passou do armazenamento de conteúdo para estupro de vulnerável. Você parte de um cara que poderia simplesmente pagar fiança e estar na rua, mas de fato ele responderá por estupro”, explica o perito.
Mesmo após tantas investigações e prisões importantes, há casos que ainda marcam os policiais. O investigador Jorge André lembra o caso de um dirigente de ensino que abusou sexualmente de duas irmãs 30 anos atrás. Na época, ninguém acreditou nas vítimas. Após a prisão do homem, décadas mais tarde, uma das irmãs conseguiu o número de celular do investigador. Até hoje, todos os domingos, ela liga para ele e lê um trecho da Bíblia, como uma forma de agradecer pelo trabalho do policial.
“Quando teve a prisão, ela disse: ‘Estou ligando para agradecer, porque achava que eu era o problema nessa sociedade, não essas pessoas”, lembra Jorge André.